Danilo, treze anos, tentava desesperadamente estudar trancado no seu quarto. A recuperação se aproximava com a velocidade de um jato. Aliás, jato era uma palavra que não saía da cabeça do menino. Sua mãe, havia mantido seu jato de controle remoto guardado e escondido desde que soube dessa história de recuperação, ela não havia ficado nada contente. É claro que para ter seu avião de volta ele tentaria de qualquer maneira burlar aquela situação adversa pra se encontrar com seu brinquedo novamente.
A professora de inglês de Danilo era, chamando generosamente, um demônio e as suas avaliações se tornavam martírio na mão dos guris que urinavam-se de desespero. O que Danilo não sabia, era que o maior castigo imaginado por sua mãe não era deixar de pilotar seu avião, comprado pelos avós com muito custo. Nem tão pouco perder as saídas com os amigos. A mãe já havia decidido que se houvesse repetência, Danilo iria estudar um ano numa escola pública da região. Ele não sabia, mas ali, naquele quarto, sua luta não era somente pelo avião de granfino que ganhara dos avós depois de alguns anos recebendo presentes de vestir ou de comer no aniversário. Danilo lutava por sua permanência numa classe onde seus maiores medos e preconceitos se escondiam e podiam permanecer ocultos até os papos com os amigos e as brigas e peladas contra os moleques mais pobres e que estudavam no ‘Brizolão’ mais próximo de sua casa e escola.
No dia do maldito exame, foi o primeiro a acordar. Arrumou-se e tomou café com uma motivação jamais vista desde os tempos do ensino infantil, saiu adiantadamente, com a disposição em alta. Mas, bastou sentar-se à carteira para sentir o estômago dar saltos dentro de si. Observou o relógio e nem ao menos ouviu os brados de lealdade invocados pela professora, tentando alertar os alunos para que não cometessem o pecado capital da cola, ainda mais com uma professora tão rígida. Recebeu a prova. Sentiu suas mãos suando frio e o estômago agora pipocava em seu ventre. Lembrou-se do avião, da mudança de escola não, ele nem desconfiava o quão grave era a situação. E pronto! Havia começado a fazer a avaliação de recuperação em inglês.
Cada vez mais, melancolicamente via seu destino mais claro nas entrelinhas da prova. Tudo se parecia impossível de se resolver. Tudo que havia estudado no seu quarto antes, não passava de besteiras sem sentido. Para não dizer que tudo era um inferno, Danilo estava se virando com as questões mais fáceis. Porém, nas mais difíceis, e consequentemente as que mais valiam pontos, estava se arruinando e vendo sua determinação encerrar-se. Já não tinha mais jeito. Era entregar a prova e rezar por uma nota cinco. Era tudo o que Danilo precisava.
Chega o dia do resultado. Não com o mesmo afinco anterior, Danilo se dirige à escola com a esperança no coração. Ainda sem saber seu principal castigo, caminhava como um zumbi, sem perceber absolutamente nada ao seu redor. Pensava exclusivamente na sua nota. ‘Só um cinco’, pensava ele. A entrada da escola apinhava-se de alunos ávidos por suas salvações ou condenações para uma vida futura de estudos, estudos e estudos. Quando sua série foi chamada para receber o boletim, Danilo sentiu na espinha um frio dos Andes. Calou-se repentinamente e deixou o animado papo sobre futebol com os amigos para depois. Isso se houvesse depois...
Depois das piores férias da sua vida, Danilo teve de se contentar e consolar com a escola pública. Ia diariamente triste, como se fosse para uma forca. Não engolira o quatro e meio que a maldita professora de inglês havia lhe dado na prova. ‘Um absurdo!’, bradava ele. Um dia, depois de sofrer na mão dos antigos desafetos todo o tipo de ‘barbaridade’ escolar, chegou em casa aos berros
- Mãe, não quero mais voltar pra lá! Por favor, não me deixa voltar!
- Foi você quem desperdiçou a chance Danilo, não eu.
No dia seguinte, levantou-se com um comportamento muito estranho. Como no dia da prova de inglês que o levou ao fracasso, foi o primeiro a levantar-se. Foi até o quintal, colocou na mochila uma pequena lata de tinta que há tempos estava jogada num canto, pegou no banheiro um velho batom da mãe e seguiu rumo a seu martírio diário. Passou antes na antiga escola e vendo tudo fechado e ainda vazio, como previu, pintou com a tinta do avô no portão branco ‘SUNDAY MORNING, NEVER MORE’, a frase que o tinha reprovado. Seguiu então para sua nova escola. O olhar perdido de uma mente mergulhada na insanidade pairava sobre seu rosto mais que as sardas e espinhas. Entrou na nova escola como um jato, o jato que jamais conduziria de novo, e foi logo sendo importunado por seus novos colegas de classe. Pintou então, com o batom da mãe, a mesma frase que havia pintado no portão de sua antiga escola na camisa branca de seu uniforme. Foi para o alto do prédio, onde a quadra de esportes reinava absoluta no último andar. Sem ao menos explicar ao inspetor o porquê do seu uniforme pintado, fugindo as regras do colégio, atirou-se lá de cima. Caiu no gramado como um herói com a frase ‘SUNDAY MORNING, NEVER MORE’ no peito. Finalmente havia aprendido um pouco de inglês.
Guilherme Cabral
Para ler ouvindo - Sunday Morning / The Velvet Underground and Nico