terça-feira, 11 de agosto de 2009

Motores



Hoje, mais cedo, o homem veio me trazer um botijão de gás. Trinta reais. Viver está ficando cada vez mais caro. E agora voltei a me deitar no sofá. Eu escrevo. Escrevo sem parar, mas sinto uma preguiça incalculável. Tive que trocar o gás. O idiota não pode nem trocar o gás. Estou morrendo de preguiça e coçando o saco. Estou de saco cheio dessa cidade cinza e provinciana. Eu tenho preguiça de sair daqui. Mas eu quero sair. Não agora, agora preciso ir até a casa da frente. A casa da dona dessa casa. Vou pagar o aluguel e reclamar do cheiro forte de tinta que está entrando direto na minha sala, onde passo a maior parte do meu tempo lendo, escrevendo e coçando o saco, sempre deitado no sofá. Quase não ligo essa velha televisão. O rádio, sempre me acompanha. Mas quase sem músicas. As notícias da CBN, isso sim. Mas elas também não me interessam. O que realmente me interessa é escrever. Uma escrita maldita. Uma que só eu saiba e consiga ler. Eu não recebo visitas. Tenho que ir pagar o aluguel. No meu quarto, a velha estante que era ainda da repartição do meu pai está quase caindo, mas eu a escoro com um banco velho que trouxe da casa da tia Marta. Velha insuportável, me cobrou doze reais. Nessa instante, todos os meus cadernos. Com aquela escrita maldita que sai de mim. As vezes, encontro as letras, palavras, frases, perdidas em folhas soltas. Eu as colo em outras folhas que condizem. Vou me levantar e pagar o aluguel. A senhoria estava esperando desde ontem, mas eu não trabalhei de dia. Ontem de dia eu só escrevi. Escrevo tudo que penso que é para não correr o risco de ser tachado como louco. Mas essa é a contradição que me impede de publicar qualquer escrito. Eu não sou louco. Eu sou apenas um bom preguiçoso. A kombi precisava ser lavada essa tarde, mas eu só vou trabalhar a noite. Tenho que pagar o aluguel. Vou adormecer antes que eu resolva enfim levantar. O aluguel fica para depois.
Acordei com um plano mirabolante de não pagar o aluguel, mas um processo demoraria séculos, e eu não tenho tempo para desperdiçar meu tempo livre. Por isso eu pago. Em cima da geladeira, tem um pato onde minha mãe guardava os ovos. Ela faleceu faz três meses exatos. Três meses hoje, dia de pagar o aluguel. Não liguei muito para o enterro, muito menos para a morte dela. A família me acha um monstro sem sentimentos, mas tudo o que eu preciso para lembrar dela está naquele quarto ali, na direita do banheiro. Não, não era seu quarto. Era o quarto onde ela guardava o que não queria. O que queria jogar fora. Discos, babilaques e fotos. Louças, lâmpadas e cartas. Ela guardava lâmpadas. Não era coleção, pois ela não desejava aqueles lixos. Ela simplesmente não se desfazia. Em um isopor enorme, lá estão as lâmpadas. Eu não mantive essa mania. Mas sinto-a me recriminando porque joguei fora as duas lâmpadas que queimaram nesses três meses. Três meses hoje, dia de pagar o aluguel. O cheiro de tinta é forte, mas não vale um processo longo e demorado que vai me tirar do sofá e dos cadernos por algum tempo. Eu trabalho a noite, pois eu gosto de passar o dia lá dentro de casa. Aqui fora, nem a mangueira rende frutos. E eu tenho que pagar o aluguel. Fui até a casa da dona da minha casa. A minha casa, não era minha. Fora antes dos meus pais, como todas as outras daquela pequena vila. Mas o meu pai vendeu a vila faz tempo. Eu e meu irmão ainda não havíamos saído de casa. Meu irmão estudou muito. Eu parei no primeiro período de engenharia. Era uma merda. Meu pai vendeu a vila quando éramos pequenos. Eu não me lembro, meu irmão deve se lembrar melhor, ele é mais velho. Nem sei o motivo. Agora, a dona da minha casa é quem é a dona. Antes era o seu Joel, mas ele também vendeu. Vendeu pra essa velha. Eu tenho repúdio à velhice. Não se pode deitar na velhice, se não você sente dores. A velhice é uma doença que os preguiçosos não se podem dar ao luxo de ter. É dia de pagar o aluguel. Seu Joel não nos deixava pagar. Dizia que tudo que havia conquistado era graças à vila do meu pai. Ele também era velho. Velho e ignorante. Velho e burro. Burrice é uma doença que os preguiçosos não podem ter. Ela nos priva de argumentar a favor da nossa própria doença. Chamei feito um louco a velha que é dona da minha casa. Ela é velha, mas não é burra, apesar de ser ignorante. Ela não atendeu. Nessa vila só moram velhos. Eu não pretendo ficar velho e decrépito. Eu fumo, eu bebo e dirijo pelo menos doze horas por noite. Durmo pouco, escrevo muito. Deu vontade de comer. Essa louça está na pia faz três dias. Há três meses atrás, minha mãe morria. Hoje, exatos três meses depois, é dia de pagar o aluguel. Mas a velha Carmita não responde. Sim, Carmita é o nome da velha que é dona da minha casa. Mas ela não responde. Esse cheiro de tinta me dá fome. Vou até a vizinha comê-la. Ou quem saber comer. Se não, busco a kombi e vou comer na pensão. A chave está dentro de casa. E eu sentado no murinho da varanda. Mais uns dez minutos e eu vou pegar. Três meses depois que enterraram minha mãe, é dia de pagar o aluguel. A velha Carmita cobra.
Senti-me obrigado a voltar. Ela não atende. Não atende mesmo. Então vou até a minha vizinha. Chego com o apetite e os hormônios em fúria. Ela grita “entra”, como quem tem urgência que eu o faça. Encontro-a toda molhada, encostada com a barriga no tanque, me olhando cheia de maldade. Noto que ali acima da panturrilha esquerda, começa a se mostrar umas varizes. Fico meio enojado no início, mas logo ela me convence a entrar. Eu já mostro uma ereção significativa. Ela, secando as mãos num pano de pratos encardido, me pergunta o que fui fazer ali. Respondo que estou com fome e senti o cheiro de boa comida. Ela se mostra surpresa. Encara com um sorriso bobo, a minha cara dura. Eu reparo a louça na pia. Não deve estar a tanto tempo quanto a minha. Reparo acima do filtro de barro, pregado na parede, um calendário do ano passado. Eu reparo tudo. Ela coloca um belo prato de comida. Eu não terminei de comer. No quarto, depois de gozarmos quase juntos, ela tenta me falar de como está a vida de solteira. Que era também era bom me dar enquanto casada. Eu ouço poucas palavras. Levanto nu e cortando totalmente o barato digo rispidamente: “preciso pagar o aluguel!”. Saio levando uma maçã. E a velha, dona da minha casa, dona Carmita, ainda não está lá. Começo a estranhar, mas que se foda.
Ela ma chama. É ela, é a velha. Ela quer o aluguel. Eu vou até o pato da minha mãe, em cima da geladeira. Hoje faz três meses que enterraram a minha mãe. Eu não estava lá. Não me arrependo. Não me arrependo mesmo. O dinheiro do aluguel eu deixo no pato. No pato da minha mãe, em cima da geladeira. Ela usava para guardar os ovos. Esse pato é horrível. Eu não consigo me livrar dele. Nessa casa só tem coisas velhas. Eu não quero chegar à velhice. Pago o aluguel, volto para o sofá. Daqui a pouco tenho de ir trabalhar. Comida, eu estou precisando comprar algo para cozinhar. A geladeira está completamente vazia. O armário também. Cigarros eu tenho. Acabei de apagar um. E ainda tem uns três maços lá no quarto. Faz tempo não entro no meu quarto. Há uns três dias não saio desse sofá nem para toma banho. Hoje faz três meses que enterraram minha mãe. Hoje paguei o aluguel. Hoje comi a vizinha. Vou trabalhar.