sexta-feira, 25 de julho de 2008

Os 98 Bastardos


Era domingo e o boteco do Bené pegava fogo. As donas-de-casa dos dias de semana e os maridos bêbados de todos os dias de Fla-Flu sambavam ao som de um doído pagode. Era um tal de tentar flertar com as antigas putas rebombeiras que o bairro escondia, sentar no colo dos cobradores de ônibus que curtiam sua folga e de cantar aos altos pulmões a simplicidade das letras impregnadas do amor chulo. Era além de tudo feriado e só o bar do Bené abrira as suas enferrujadas portas de ferro. De fato, era uma alegria que contagiava toda a massa. Era até bonito vivenciar algo do gênero. Muitas das almas que lá estavam, não compartilhavam a mesma felicidade em outros aspectos ou outros momentos.

Mercadinho, padaria, locadora... Tudo fechado. Somente o botequim dirigido pelo já famoso Bené sobrevivia a um feriado no domingo. Os crentes já se agitavam com o culto que estava para chegar, os homens já aqueciam suas gargantas para gritos de “filho-da-puta” contra o juiz ou ao craque que perdeu um gol e as mulheres já preparavam os mesmos palavreados para a falta de atenção dos mesmos homens, quando eu, que estava bebendo em uma das mesas junto a dois amigos vi a chegada de um antigo vizinho. Homem rigoroso com os filhos, com a mulher e o trabalho, seu Joel era um indivíduo bem peculiar. Falava tranquilamente, se expressava com certa cautela e pensava suas palavras, justamente para não se ver misturado a gentinha que atolava o bar. Para ele, que gostava mesmo era de música estrangeira, mesmo sem conhecer quase nada nem das histórias e das letras, era o que prestava. Aquela melação não era nem para homem. Esse negócio de ficar que nem mulherzinha com cabelo cheio de goma e rebolar, não fazia parte da vida de seu Joel. Aquela merda toda era falta de vergonha, isso sim.

E lá estava seu Joel, entrando naquela barraca cheia de gentinha.Como todo estabelecimento de bem estava fechado, o jeito era compra a coca-cola do almoço lá na birosca do Bené. E seu Joel já entrou com a cara amarrada de estar naquele antro. Já foi logo pedindo licença de cabeça baixa para não trocar olhar com gente daquele porte. Mas mesmo se escondendo como um rato que foge de uma vassoura voraz, foi reconhecido e cumprimentado e com louvor por um dos nossos vizinhos, Luís Joelho. Luís Joelho era gente fina, mas não conseguia manter a boca calada. Havia gente que cochichava pelos cantos que era de família, pois seu pai tinha perecido de morte matada por nego que era de prestar serviço sujo aos donos da situação, só porque revelara que viu uma rapa deles aplicando um sujeito ladrãozinho perto da linha. Pois bem, seu Joel o cumprimentou e tratou logo de ir buscar seu refrigerante e sair da bagunça armada no tal botequim. Já se ia descendo a calçada, quando Luís Joelho o chamou de volta. Perguntou se seu Joel queria se sentar e tomar uma com ele e seus amigos. Seu Joel negou logo, disse que ia almoçar com a família, mas com o argumento de um copo só porque era seu aniversário, Joelho dobrou o velho Joel e o convenceu a uma cervejinha só. Quando sentou-se, o homem quase se levantou de imediato, estava lá sentado também, Cabrito, homem de muito prestígio entre gente desalmada que encomendava a alma do filho alheio ao Cão. Os filhos nunca prestavam, mas não era de direito dos comerciantes furtados exercerem essa justiça. Joel temia muito o homem, mas não o respeitava. Olhava para Cabrito como se fosse um verme. ‘Além de ser matador, esse safado também é filho-da-puta. É um bastardo’, sempre fala seu Joel.

Depois do terceiro copo, como não era muito de beber, seu Joel já estava se dando por satisfeito e até de língua solta. Falou mal do Botafogo, time do dono do bar, reclamou do som alto que não deixava os outros conversarem e pra finalizar, disse que o bairro era uma merda e que era capaz de encontrar em vinte e quatro horas é capaz de nomear cem bastardos para a rapaziada se divertir as custas. Mal sabia seu Joel, mas o desafio foi aceito logo por Cabrito, que coçava os dedos e buscava na cerveja esfriar a cabeça pra não puxar a arma para aquele paraíba metido a ‘Zé Pureza’. Cabrito foi logo dizendo em tom de ameaça:

- Esperto isso que o senhor disse. Quero ver fazer mesmo. Quero ver me dar nome de cem filho de chocadeira daqui do Nova América.

- Se to dizendo que faço, não preciso da tua voz pra fazer. Se duvida, arruma papel e caneta que lhe dou nome e endereço dos bastardinhos e das puta véia.

- Então meu bom... aguarda aí que logo trago o que tu me pediu.

Voltava Cabrito de dentro do boteco do Bené trazendo uma caneta e uma penca de guardanapos para o já desestimulado seu Joel, a cerveja já começava dar lugar a adrenalina de dizer não a uma coisa que um homem daquele havia levado para o pessoal. A tensão aumentou enquanto o dito cujo avançava para a mesa onde Joel, Luís Joelho e mais alguns outros estavam sentados. Joel tratou logo de dizer que não era para Cabrito levar nada para o lado pessoal e que ele já estava alto com os copos de cerveja, sem falar que a mulher ainda o aguardava com o refrigerante para o almoço. Logo um grito irrompeu deixando todos os fregueses de olhos esbugalhados. Cabrito tava com o trinta e oito na mão, mandando o paraíba sentar. O sangue nos olhos do matador e a saliva saltando da boca.

- Agora tu vai escrever essa porra. Tu não sabe de que saco meio bairro veio? Não ta aí todo cheio de maldade falando dos outros? Então escreve filho-da-puta, diz aí quem é cria de chocadeira. Fala de mim e da minha finada mãe pra voce ver como não lhe acerto os cornos.

Indignado com o acontecido, Bené e a turma do deixa disso foram logo entrando em ação para acalmar os ânimos. Mas para piorar, seu Joel decidiu ser corajoso logo naquele dia e xingou o matador de tudo quanto foi nome ruim. Os homens do bar tentaram impedir que tudo recomeçasse. Mas Luís Joelho foi logo gritando:

- Deixa, não é de hoje que Cabrito quer resolver isso. Aquele filho novo do Joel é dele. O moleque é do Cabrito, deixa os dois resolverem que nem homem, porra.

Fez-se silencio imediato no bar inteiro, no cenário, o tempo havia parado. Ninguém parecia saber que o Cabrito, que andava condenando almas que ajudaram no adultério da esposa alheia, estava comendo a mulher do seu Joel. De repente um estampido. Corre, corre e Luís Joelho se esvaindo em sangue caído e morto no chão. Só quem restou no bar, foi Bené, o dono, Joel e Cabrito e o falecido, o bocudo Luís Joelho. Fim do segredo, em Nova América, todos eram bastardos. Todos mesmo.

Dos nomes que seu Joel se lembrava dentre os filhos de chocadeira, ele tinha certeza de noventa e oito. Mas faltavam dois para os cem propostos, e esses podia ser contatos com o próprio filho, de meses e ele próprio, já que a sua mãe quando saiu da paraíba foi parar nas bocas de Santos e era amante de cantor famoso. Dizem que era o Nelson Gonçalves. Mas no Nova América, neguinho fala de todo mundo.